Dispõe o artigo 334º do CC que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Segundo o legislador, a determinação da legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito, ou seja, da existência ou não de abuso do direito, afere-se a partir de três conceitos: a boa-fé, os bons costumes e o fim social ou económico do direito.
A doutrina distingue dois sentidos principais da boa-fé. No primeiro, ela é essencialmente um estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na ignorância da sua ilicitude, resultando de tal estado consequências favoráveis para o sujeito do comportamento. No segundo sentido, já se apresenta como princípio (normativo e/ou geral de direito) de atuação. A boa-fé significa agora que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.
Por bons costumes há-de entender-se um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e corretas aceitam comummente.
O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respetiva atribuição pela lei ao seu titular.
De qualquer forma, o exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto. É isso que resulta expressamente do artigo 334º e é também essa a lição de todos os autores e de todas as legislações.
- Da modalidade “venire contra factum proprium”
Conforme já supra explicitado, o abuso do direito, nas suas várias modalidades, pressupõe sempre que “o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (artigo 334.º do CC).
A proibição do comportamento contraditório configura atualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra, justamente, na proibição do abuso do direito.
No entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório, ou, dito de outro modo, uma regra geral de coerência do comportamento dos sujeitos jurídico-privados, juridicamente exigível.
Assim, o indivíduo é livre de mudar de opinião e de conduta fora dos casos em que assumiu compromissos negociais.
Daí que, em princípio, o mecanismo disponibilizado pela ordem jurídica para possibilitar a formação da confiança na palavra dada e, consequentemente, na conduta futura dos contraentes seja só o negócio jurídico.
Sabido, porém, que uma das funções essenciais do direito é a tutela das expectativas das pessoas, facilmente se intui que por si só o negócio jurídico, sob pena de flagrantes injustiças em muitas situações concretas, não pode constituir o único modo de proteção das expectativas dos sujeitos na não contradição da conduta da outra parte; casos há em que, ainda antes do limiar da vinculação contratual, o agente deve ser obrigado a honrar as expectativas que criou, podendo exigir-se-lhe, então, que atue de forma correspondente à confiança que despertou; casos, isto é, em que não pode venire contra factum proprium.
A delimitação de tais casos obrigou a doutrina e a jurisprudência a terem que precisar com o máximo de rigor possível os pressupostos da proibição desta modalidade do abuso, desde logo por se ter a noção de que este instituto apenas deve funcionar em situações limite, como verdadeira válvula de segurança e de escape do sistema, e não como um remédio de que se lança mão sempre que a aplicação das regras de direito estrito pareça ser insuficiente para assegurar a solução justa do caso.
Assim, há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja suscetível de fundar uma situação objetiva de confiança.
Em segundo lugar, exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a atual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente.
Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa-fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo ato anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente.
Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma atividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa atividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente.
Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjetiva objetivamente fundada; terá de existir causalidade entre, por um lado, a situação objetiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano.
Os pressupostos enumerados não podem, em caso algum, ser aplicados automaticamente pois o venire contra factum proprium é uma técnica que pressupõe um controlo da adequação material da solução, com uma valoração global de todos os elementos à luz do ponto de vista da tutela da confiança legítima.
Assim tem de ser justamente porque o princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; ele está presente, desde logo, na norma do artigo 334º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa-fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a proteção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.